E porque me lembrei, partilho esta pequena história:
Nicola. O café dos
improvisos de Bocage
Conhecido por ser um
espaço frequentado pelo poeta Bocage, o Café Nicola “sobreviveu” a uma guerra
civil, à queda da monarquia, ao Estado Novo e a várias crises financeiras.
Lisboa,
1787. A capital portuguesa recupera aos poucos e poucos a vida que tinha antes
do terramoto que a assolou 32 anos antes. Vários investidores vêm em Lisboa uma
oportunidade de negócio - Nicola Breteiro foi um deles.
Este
italiano decide abrir o Botequim do Nicola no sítio a que hoje chamam Praça D.
Pedro IV, no Rossio, em Lisboa. A inauguração do espaço não passou despercebida
a ninguém, tendo mesmo a “Gazeta de Lisboa” (jornal fundado em 1715 e extinto
em 1820) feito referência à abertura do estabelecimento – a comercialização de
cafés e refrescos tornou-se um sucesso e rapidamente este botequim lisboeta deu
nas vistas.
A
academia dos reprimidos… e de Bocage. Na altura da inauguração deste espaço já
se viviam tempos politicamente conturbados em Portugal. O Intendente-Geral da
Polícia do tempo da Rainha D. Maria I, Diogo Inácio de Pina Manique, era
responsável pela repressão das ideias oriundas da Revolução Francesa
(1789-1799) e pelo controlo de vários grupos, como os jacobinos e os maçons. De
acordo com alguns registos mais antigos e as histórias que foram passando de
boca em boca, estes organizavam reuniões no Nicola, com o objetivo de minar os
pilares do Antigo Regime e aliciar novos elementos.
Para
além destes, o botequim albergava também escritores, pintores, intelectuais e
políticos da altura – a essa clientela se deve a atribuição da alcunha
‘Academia’ a este espaço. Um dos clientes mais conhecidos e assíduos era Manuel
Maria Barbosa du Bocage. O poeta passou largas horas neste café a declamar
alguns dos seus poemas e a participar em tertúlias literárias. Diz-se, aliás,
que depois de ter falecido, o seu grupo de amigos continuou a frequentar o
Nicola e a organizar tertúlias, mantendo assim o seu espírito vivo.
Terá
sido no Nicola que o poeta amaldiçoou o padre absolutista, escritor e polemista
truculento José Agostinho de Macedo e ditou a um amigo ‘Pena de Talião’, uma
sátira ao seu inimigo.
O próprio
café acabou por constar na obra de Bocage: reza a história que, após uma tarde
de pândega neste espaço, um polícia lhe perguntou quem era, de onde vinha e
para onde ia, ao que o poeta respondeu em verso:
“Eu
sou Bocage
Venho
do Nicola
Vou
p’ro outro mundo
Se
disparas a pistola”.
De
café a ourivesaria, passando por livraria. Devido às fortes pressões políticas
que se faziam sentir na altura e aos confrontos entre as autoridades e a
clientela, o Nicola é obrigado a fechar portas em 1834, no final da guerra
civil entre absolutistas e liberais.
O
espaço prosseguiu como livraria e chegou mesmo, no início do século XX, a
transformar-se numa ourivesaria. O local acaba por ser adquirido por Joaquim
Fonseca Albuquerque, antigo sócio do Café Chave d’Ouro, em 1929. O novo dono
decide manter o conceito e o nome original, retirando apenas a palavra
‘botequim’ e substituindo-a por ‘café’. Albuquerque quis manter o espírito que
se tinha perdido com o encerramento do estabelecimento e homenagear Bocage com
uma estátua criada pelo escultor Marcelino de Almeida e quadros do pintor
Fernando Santos.
A
presença do poeta naquele café ficou eternizada na escultura, na poesia… Mas
também no próprio café: a família Albuquerque decidiu criar o seu próprio lote
de café, proveniente do Brasil e São Tomé e Príncipe, comercializando-o com o
nome Nicola. Este é sempre associado à figura do poeta, daí que o símbolo da
embalagem de café tenha sido, durante vários anos, um desenho de Bocage. Esta
ligação entre o lote de café e o estabelecimento quebrou-se há 10 anos – “O
café precisava deste espaço para o marketing, nós precisamos dele para viver”,
explicou ao i Rui Oliveira, gerente desta casa há precisamente uma década.
Um
espaço de campanhas. Os tempos foram passando e o Café Nicola manteve-se um
local de referência. “Muitas personalidades passaram por este espaço.
Principalmente políticos – é um local de referência durante as campanhas”, diz
Rui Oliveira, sem querer adiantar nomes. Apesar da conotação política por vezes
atribuída ao café no passado, o atual gerente do espaço afirma que tal não se
verifica nos nossos dias – “é um café frequentado por membros de todos os
partidos políticos, todos passam aqui”. Para além das personalidades políticas,
o Café Nicola também recebeu várias pessoas do meio artístico. “Estiveram aqui
vários artistas nacionais e estrangeiros, a maioria atores brasileiros”.
E,
seguindo a tradição imposta nos primeiros tempos de ‘vida’ deste
estabelecimento, os momentos de divulgação cultural continuam a ser uma
prioridade. “Tivemos durante algum tempo sessões de jazz no café. Agora temos
noites de fado. É uma forma de divulgar a nossa cultura”, explica o gerente.
“Faço
a paz, sustento a guerra,
Agrado
a doutos e a rudes,
Gero
vícios e virtudes,
Torço
as leis, domino a Terra”.
Ainda
hoje, Bocage é visto pelo meio popular como ‘o homem das anedotas’. No entanto,
parte do seu anedotário é-lhe erradamente atribuído. Uma coisa é certa – tinha
sempre uma resposta na ponta da língua: quer para os que adorava, quer para os
que odiava. Podia ter sempre uma palavra mordaz para dirigir a alguém, mas
também sabia quando declamar os mais doces versos. E muitos terão sido escritos
depois de alguns copos e encontros inesperados no Nicola.
Retirada de: https://ionline.sapo.pt/509283